sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Um dia na vida de uma mulher



Despertou de um sono longo. A realidade chegava-lhe ordenada pelos sentidos. Ainda de olhos fechados o olfacto não transportou até si nenhum perfume que atestasse outra humana presença. A epiderme reclama-lhe o toque com intensidade de carícia, o beijo matinal no ombro direito, a junção do corpo dele com o seu, seguido de um abraço que inexoravelmente a introduziam no Mundo. Eram assim inevitavelmente os despertares aos sábados de manhã depois de ter conhecido o Bernardo, seu namorado, havia pelo menos um ano. Dois "specimens" lindos, com glamour, que desafiavam pelos bares e gafieiras do costume, os incontinentes caçadores de sexo das soirés lisboetas. Aos olhares explícitos daquela tribo de oníricos nunca tinham sido capazes de conter as sensuais coreografias que exprimiam na batida repetitiva dos sons da House Music, ou no “caliente” abraço que o bolero exigia, enquanto arrastavam os corpos colados pela pista ao encontro da nota musical que coroasse o extâse que adivinhavam invadi-los, e que se cumpriria com a cumplicidade mágica de uma atmosfera sombria que lhes outorgava a natureza de silhuetas. 

Recusava acordar. Sabia que esta negação para a vida se manifestava sempre assim depois de um “desencontro de afectos”. Mas desta vez sentia-se “incompleta” e por isso não queria desvelar-se para um dia que lhe faria sentir o peso da solidão. Estava “amputada” do afecto com mais empatia que tinha vivido estes últimos tempos. E, obviamente, sentia que não eram só as noites de enlevo e orgasmos que, em tão pouco tempo, já eram saudades, mas era tudo o que demais compunha a vivência com este companheiro. Muitas vezes os “olhares” para a realidade sobrepunham-se de tal maneira, e sabia não serem estes momentos de perfeita sintonia, uma refinada gentileza dele, que concedia ao espírito, apesar da sua sólida formação materialista, a veleidade de supor uma qualquer teoria acerca das almas gémeas.
Nesse revelado momento fazia sempre por esquecer a sua lógica de pensamento para não beliscar a harmonia e a felicidade experimentada. Mais tarde, para “explicar” aqueles momentos de existencial perfeição, sem trair a sua formação, enquadrava-os nos fenómenos empáticos que os afectos potenciam. Também a estética não os dividia apesar da diferente e natural, dizem, sensibilidade dos géneros. Discutiam livros e cinema sem exaltar-se e em total liberdade de opinião.

Estava triste porque este tempo de feliz mundividência estava prestes a desmoronar-se por um ataque de imatura “ciúme” que uma tendência possessiva inflamou ainda mais. Sentiu a liberdade, a sua, “encolher” quando ele “soltou” um discurso sobre o compromisso que pretendia, percebeu ali mesmo, organizar as suas emoções. Para ela as relações eram, sempre tinham sido, “edifícios” estratificados por experiências afectivas e emocionais, no qual o ajustamento das mesmas determinava o cimento da sua estrutura e a sua permanência. Percebia o incómodo, o dele, porque o piropo de um bem-apessoado transeunte da gafieira tinha estimulado nela uma resposta no mesmo tom, seguida de um curto “briefing” de insinuações, entrecortadas com ritualizadas coreografias de côrte. O irreverente “beicinho” do Bernardo foi por si apercebido sem nenhum sentimento mesquinho de superioridade. Sentiu um enorme carinho pelo seu indiscreto momento de insegurança. Gostava da pessoa de Bernardo. E gostava do homem que ele incorporava. Mas deu consigo numa das mesas da gafieira a “engolir”, por respeito, aquele inoportuno e redutor discurso acerca das formalidades que ele entende deverem fazer parte das suas relações afectivas, e que acabavam de ser desvalorizadas pelo comportamento dela.

Ficou triste pelo que entendia ser um precedente ao qual não poderia ceder. Antevia que se concedesse, a Bernardo, aquela perspectiva estaria a submeter-se a um código moralizador do seu comportamento afectivo que não subscrevia e a mutilar a sua “livre” natureza para viver emoções que, a seu ver, não punham em causa os alicerces da sua relação com ele. Sabia, sobretudo, que o valor e a permanência da sua relação com Bernardo resultavam do somatório e da intensidade das experiências que viveram e que aquele, no seu entender, insignificante episódio não poderia corromper esta concepção; para si um credo, "de que as relações afectivas permanecem porque o seu edifício é estruturado pela sedimentação de diferentes experiências com capacidade para se ajustarem entre si”.
 Daí entender que aquele julgamento a que Bernardo a tinha submetido se revelava como uma experiência desajustada de todas as anteriores. Pressentida a amargura que esta rotura causaria aos dois, o afecto que lhe tinha, enorme, desaconselhava-a a que num impulso radical ditasse o fim daquela relação, ali e naquele momento, porque a amargura não lhes daria sossego e a tristeza encontraria motivos para se instalar por algum tempo. Duvidou sobre qual a opção mas correcta a tomar.
Queria compreender se aquele discurso aparecia como recurso à justificação de um despeitado momento ou se revelava parte de uma mentalidade por si desconhecida. Entendeu voltar sozinha para casa e por antecipação começou a viver, ali mesmo, a experiência de solidão que, no seu apartamento e na sua cama, se tornariam mais intensos naquela noite de sexta-feira.

No dia seguinte, na manhã de sábado, encontrava-se na cama pressionada pela decisão de ter de ressuscitar ou aniquilar uma relação que ontem tinha suspendido. Agitada enquanto “vivia” por remake o sucedido, sentiu-se desconfortável na cama. Uma atrevida ponta de ar invadiu-lhe a atmosfera quente dos lençóis e causou-lhe um “frissom” no corpo, agravando ainda mais o desconforto do seu melancólico e triste despertar. Abriu por fim os olhos e a claridade que a manhã, já alta, tinha lançado para dentro do seu quarto feriu-lhe o estado de sonolência. Algum calor, impróprio do Inverno, fazia-lhe adivinhar a vida lá fora, manifestando-se em desportistas de fim-de-semana mobilizados no combate à adiposidade construída em empregos sedentários que lhe penalizam o corpo e a estética, numa sociedade que paradoxalmente tem nas diferenças humanas um valor democrático, mas que obtusamente insiste por influência de uma fanática filosofia da “normatização” veiculada por alguns midia, em construir modelos para a standarização de tudo e de todos nós.
Reconheceu neste pensamento uma visão de crítica militante de todo o pensamento ou filosofia que se aflorasse redutora das escolhas individuais de vida que não atentassem contra a estabilidade da ordem democrática.
Mas era do mais elementar bom senso reconhecer também o esforço meritório daqueles desportistas de fim-de-semana, por influência, ou não, do discurso mediático. Sobretudo porque era evidente que a actividade física é boa para a saúde.

Percebeu entretanto que já nem mesmo o conforto da cama a compensava. Ficar ali significava não contrariar a pulsão masoquista destes momentos e enredar-se no sucedido. Energicamente levantou-se como se a vida a puxasse para dentro de si e dirigiu-se ao chuveiro. Sentiu que a temperatura quente da água se revelava como a primeira compensação daquele dia. Apostou em si e produziu-se sem saber que um convite percorria à velocidade da luz os fios do telefone para se anunciar num DRING. Atendeu. Do outro lado um colega e amigo revelava enfaticamente a mensagem relembrando-lhe que hoje se celebrava o jantar da sua agência de publicidade. Sociabilizar-se era tudo o que menos queria naquele momento. Olhou-se ao espelho e gostou de si. E associou ao seu embelezamento uma premonição qualquer que sentia positiva. Respondeu entusiasmada que sim. Que estaria presente. Passou novamente pelo espelho para que a imagem, de si, ali reflectida abrisse brechas na sua tristeza e lhe colasse no espírito confiança e alegria. Muita alegria.

Evitou o elevador para sair do prédio. Quando chegou à rua já a Lua com o seu exército de estrelas tinham encetado uma perseguição ao Sol para instalarem a noite no céu. Por impulso olhou para o firmamento na procura de uma estrela que sentisse sua e que brilhasse, em si, toda esta noite. A empatia não se estabeleceu. Na dúvida segurou bem dentro do peito a positividade do momento. Quando saiu do carro, já no destino, constatou que o néon tinha ocupado toda a cidade.

Mostrou-se à chegada e durante o convívio receptiva aos "piropos". Mas soube também perceber os excessos. Tinha a certeza que nem tudo, naquelas exuberantes demonstrações de afecto, era inteiramente verdade. Mas não deixou de estar à altura das insinuações. Era natural nela a adesão aos jogos de palavras eivadas de subliminares propósitos. Mas entendia-os como um modo que os seres inteligentes encontraram para tornear, sem inconveniência, alguns formalismos culturalmente ainda “vivos” e actuantes em muitas mentalidades. Como a do Bernardo agora revelada. Por isso ele não entendia como é que estes jogos podiam ser apenas prazeres intelectuais, carícias egocêntricas e por aí ficavam sem, imediatas, consequências. Bernardo defendia que as insinuações disfarçam, em menor ou maior grau, objectivas intenções. Mas concretizáveis, defendia eu, apenas e só pela vontade consonante dos intervenientes. E, para ela, os afectos onde estes prazeres insinuados se realizam eram, muito concretos e sempre experienciados.

Na despedida alguns beijos não encontraram o local desejado e alongaram, para uma sublimação, a sua permanência no "destino" possível que lhes reservou no rosto.
Alguns olhares insinuavam um desejo aceso nas entranhas que teriam que adiar. Porque nessa noite, a excitada predisposição libidinosa não iria cumprir-se em sexo. Pelo menos consigo como partenaire. Ninguém ali tinha acordado os seus duendes para brincar aos "amantes”. O momento tinha tornado tudo demasiado óbvio para todos. A indecisão parecia ter tomado conta das vontades e suspendido o tempo. As insistências para que ficasse foram infrutíferas. Com um cordial e aberto sorriso finalizou a despedida deixando alguns apontamentos em aberto para mais tarde confirmar. Em seguida desprendeu-se suavemente da sua voz um cumprimento de boa noite que se elevou-se no ar para apaziguar o cosmos e, todos e cada um por si, pensaram num destino para aquela noite. O ronco dos automóveis "estilhaçou" o silêncio e a claridade à solta dos faróis perfurou a noite para desvendar o segredo dos caminhos. Ela empreendeu o rumo de casa como o desejado destino.

No regresso o tempo da viagem pareceu-lhe suspenso e sem atritos de qualquer ordem. A silhueta do seu "refúgio", como que por magia, saída das trevas, projectou-se num horizonte próximo. Bocejou dentro do carro. Minutos depois dava o primeiro passo dentro do seu apartamento. Voltou-se, fechou a porta, e “apalpou” o espaço com um olhar de reconhecimento. Sentiu um carinho imenso e rememorou, num ápice, a história de todos os adereços que eram parte de si. Da sua vida ainda curta de mulher adulta e emancipada. Detectou neles muita da sua identidade. Afinal não estava sozinha. Projectou os braços apertando-os contra o tronco num “abraço” possível a si mesma e sentiu que tinha construído um instante de felicidade. Estendeu-se no canapé da sala fechou os olhos e deixou-se ir com o turbilhão de pensamentos que reclamavam uma ordem, a sua, e pressentiu que não mudaria. Embalou-se nesse jogo com as ideias enquanto o sono cada vez mais presente lhe "roubava" a consciência. Não quis resistir. Preferiu esperar que o Sol a chamasse no outro dia. Boa noite. Murmurou para si. E não registou mais nada na memória.

4 comentários:

  1. Olá, li e gostei... Estou ansiosa pela continuação ;)

    Beijo

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  2. parece que no fundo os dois são rigorosos em seus principios.
    beijos

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  3. Estive aqui a ler-te. Como te disse este texto sensibiliza-me muito, particularmente, pois revejo-me muito nele. Beijos

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  4. Reli... cada vez que o faço gosto mais.

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