
O sol de calor temperado que desejo todos os dias desafia-me para passear com sinais de luz que vejo espraiarem-se desde da minha janela. Daqui a pouco, esta luz vai incidir directa sobre a casa e disputar-me entre o meu dever e a minha vontade. Que tortura. Imagina. Em momentos como este as memórias tornam-se pérfidas aliadas do desejo egoísta e irreverente que cresce dentro de mim e, ingratas continuam cada vez mais presentes, obrigando-me a "vivê-las", esquecendo-se que sou eu que as albergo com carinho dentro de mim e que é através de mim que têm existência.
Mas têm uma ordem própria, a dos sentidos, a que obedecem para o bem e para o mal e não podem negá-la.
Que paradoxo. Sem me aperceber os sentidos foram-se desabrochando desde que comecei a escrever-te este "recado”. A indecisão está agora em mim mais consciente e obviamente mais contundente. Sinto que o seu efeito me provoca ansiedade que me dói na alma.
Porquês, brotam-me dos olhos, como anúncios de néon desafiando um desejo que se afirma em crescendo no sentido do êxito da sua proposta. Tenho um pensamento de censura para com a minha (individual) natureza, por não impedir numa qualquer ordem, os rasgos de inconveniência destes desejos e destas memórias.
A angústia de não ter um porquê, plausível, convincente, para transformar o momento em vontade paralisa-me a acção. Num incontido impulso ergo a cabeça e pela janela entra o Tejo, que se espraia suavemente num espreguiço de kilómetros, que sei, entre Oeiras e Vila Franca de Xira. Contido pela margens que o orientam e domam a sua ciclópica força renovada diariamente pelo abraço do Oceano Atlântico, vai embalando os barcos cacilheiros que acariciam as suas águas transversalmente numa corrida diária, entre as margens, a transportar as gentes, de lá para cá.
Os turistas, misturados com as gentes que fazem o corredor entre a Praça do Comércio e o Cais do Sodré passeiam nas suas margens em cortesias reverenciando a beleza do seu azul e captam momentos, para a eternidade, com a cumplicidade do rio, num postal de que eu queria, agora, fazer parte.
Reconheço que, ter deixado escapar o olhar pela janela foi um gesto imprudente.
Fragilizei-me ainda mais perante o desejo que cresce, dentro de mim, confiadamente tranquilo na certeza de que vai ter êxito quando a decisão chegar.
Deixo-me absorver neste tempo de escrita que utilizo como um exercício de catarse.
O Sol entretanto ganhou altura e espargiu mais calor pela minha casa e limpou o céu de nuvens. Tenho (agora) a certeza pelas memórias, que o horizonte é agora mais longínquo, a paisagem de contornos mais nítidos e o postal de Lisboa à beira Tejo ainda mais belo .
Ferve-me o sangue em revolta pelo castigo que me estou a infringir. Não vou olhar o Tejo. Repeti para dentro de mim e continuei curvado sobre o teclado onde martelava estas palavras. Olhei em redor e não tinha um mastro, nem ninguém, para me amarrar a ele. Senti-me mais desprotegido que Ulisses perante o canto das sereias.
Embrulhavam-se dentro de mim, a projecção de um arrependimento a curto prazo que se fazia censura e o ímpeto de uma vontade em me deixar “benzer” pela carícias deste matinal Sol morno de Outono em Lisboa e de me juntar aos felizardos lá em baixo, na praça e no cais, cujos movimentos de passeio pareciam pautados pelo encosto de uma brisa que os orientava no sentido da comunhão com o Tejo.
Nesta hesitação sofrida, senti calor. Intui, de imediato que o tempo concedido pelo Sol para comungar das suas carícias com o Tejo e com Lisboa tinha terminado.
E desassombradamente como se tivesse a cumprir um destino cósmico, ao qual nem mesmo ele, o Astro Rei, pode fugir, subiu mais alto nos céus e empinou os raios de calor sobre esta cidade no cumprimento de uma sentença que, julgo eu, para punir o comportamento dos homens e mulheres lisboetas, que não souberam manter e elevar a harmonia e a beleza desta urbe que, ele (o Sol) tinha elegido um dia, para espreguiçar os seus primeiros, mornos e ternos raios da manhã, quando despontava a Leste depois de noite dormida noutras paragens, muito antes de Ulisses, trazido por bons ventos, ter atracado neste lugar.
O desconforto do calor fez a coragem ganhar-me e fui capaz de elevar a cabeça.
Já sem medo de ser tentado fiz incidir o olhar sobre tão, supostamente, envolvente e tentadora visão. Esta não era a Lisboa dos meus olhos e das memórias tentadoras que me apavoravam por irresistivelmente desafiarem o meu dia e o meu ser mais formal.
O que a retina me levava ao cérebro, não fosse o movimento de pessoas e carros que a atulhavam, era uma imagem de um (quase) fóssil, de uma praça citadina em desalinho, donde as ideias de melhoramentos traduzidas em obras lhe feriram a frágil harmonia da estética que a história fez crescer neste lugar, e da importância que o rio teve no seu crescimento.
As obras tinham tornado mais feio o ancoradouro dos barcos que atravessavam o Tejo sem a calma e o prazer do destino à vista. Assemelhavam-se agora mais a recipientes flutuantes que em movimentos oscilantes entre as margens, deglutiam “passageiros” enchendo os ventres de metal até á insaciabilidade, para numa digestão rápida entre quinze e vinte minutos os vomitarem, na outra margem, num desalinho estético de roupas e figuras.
“Senti” com olhar a paisagem que aquelas viagens de “cacilheiro”, faz tempo, tinham acabado.
Não era a mesma límpida brisa que despenteava e acariciava as gentes, Verão adentro, para lhes refrescar os corpos cansados e melados em suor pelo trabalho. Não era o mesmo Tejo nem a sua a verde água que, imensas vezes, excitada pela carícia suave da navegação no seu dorso transparente, lambia os barcos em movimentos despudorados pelos afectos compartidos num imenso tempo, contra os quais a moral e censura nada podiam,
Envergonhei-me por não ter dado crédito aos jornais que, com mais ou menos verdade, vão disseminando “as realidades” feitas noticias e, deixei que o Sol morno desta manhã em Lisboa me tivesse, pelas memórias que fez me “reviver”, contagiado um desejo de preguiça hoje, em mim latente, tendo-me arrancado de um real bem mais necessário que me punirá de imediato na próxima semana se eu não cumprir o que devo cumprir. Punição que se arrastará por muito mais tempo e com mais intensidade se este projecto tiver que ser adiado.
Entretanto, de repente, uma máquina começou a esventrava a minha rua mesmo em frente á minha janela, ferindo o silêncio que normalmente está neste lugar e me é tão necessário ao trabalho.
O prazer de outra coisa qualquer que não fosse estudar voltou à assomar-se aos desejos, imensos, de fugir desta secretária, que reclama para si o tempo imprescindível á realização da minha tarefa, que o barulho das obras acabou de tornar inviável.
Dei tréguas a uma consciência culpada que teimava em me acompanhar e em desvalorizar, neste contexto, a incapacidade que tive para resistir aos prazeres de reviver as memórias e suspender na “realidade” a vida.
O barulho ensurdecedor das máquinas que se intrometeu no silêncio, alterou um tempo que deslizava síncrono ponteado pelos sons característicos do quotidiano que se repetia na minha rua. O ar estalava a cada aceleração da máquina para aumentar a intensidade com que atacava o solo e o esventrava. Convoquei com todas as forças a concentração para iniciar o trabalho. Mas os sons fortes entravam-me pela janela e atingiam-me o Cérbero, alterando toda a disciplina e impedindo a minha ligação ao assunto. Aproveitei a circunstância a meu favor. E como todos os culpados que não assumem a culpa, utilizei todos os “imprecisos e dogmáticos conceitos como: o destino, o acaso, a falta de sorte, para aliviar a consciência e tal como o “inteligente” que sabe que a vontade que nos atira para o trabalho só se contrariar esperando que ela passe, fiz exactamente o mesmo; fiquei á espera que o impulso do dever me voltasse a visitar com a fé que desta vez me deixaria vencer por ele.
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