quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Paris


-->
Olá minha querida amiga, Paris é um pequeno cosmos, que a Liberdade e os movimentos que a germinaram escolheram para se cultivar. Depois é chique, charmosa  e coquette, mas também é libertária, solidária, política e revolucionária, no sentido mais amplo do termo, e desde de sempre foi (muito) cosmopolita.
Nesta planície à beira de la Seine, sempre foram acolhidos os expatriados, os congeminadores de revoluções, os idealistas, e os imorais, ou (amorais), os amantes, e as meretrizes, que viviam escondidos ou foram excomungados de todas as urbes, da Europa, onde o bafiento odor da moral cristã não lhes deixava recanto para sobreviver ou as ideias políticas afrontavam a ordem estabelecida.


A libertinagem e a contestação política estão na génese da projecção desta cidade no Mundo Europeu, e não só. Mas esta é a parte mais mundana da identidade de Paris. Montmartre, o quartier do deboche, com o Pigalle a seus pés, tornou-se, não o podiam supor, os zeladores dos costumes da época, um dos ex-libris da Paris libertina que toda a gente quer percorrer, na esperança de reconhecer um vestígio, no mínimo uma imitação, muito descaracterizada do bairro de perdição, onde Henry Lautrec e mais tarde Picasso, entre outros artistas de renome, se "compensaram" das batalhas a que a arte e o acto da criação os obrigava. Foram tempos da Paris/Burguesa.

Lá em Paris, a liberdade e o enamoramento, l'amour, sempre foram cultivados desde de muito cedo como expressões inadiáveis da natureza humana, e necessária à felicidade, harmonia, e plenitude dos seres.

Esta é uma visão, (um pouco) por dentro da História que projectou esta cidade no Mundo. Reconheço, agora que te escrevo, que esta mirada não está isenta de emoções vividas, manipuladas pelas memórias de quem nela peregrinou alguns anos. Sim. Eu vivi alguns anos em Paris. Tenho-a nas veias. Sem remorsos de não me encontrar por ali mas, por vezes, atraiçoado pelas saudades, essa expressão, que traduz a “ausência” no sentir tão lusitano. Outros tempos. Outra cidade, social e politicamente falando.

A última vez que "namorei" com ela, Paris, foi no zénite de 2008. A azáfama do Natal fazia sentir-se por todo o lado. A crise anunciava-se já  no crescendo do desemprego que comprometia equilíbrios precários e vidas difíceis entre a comunidade cada vez maior de imigrantes africanos. O Inverno e o frio que o acompanha, punha a nu todas as dificuldades que muitas destas pessoas plantavam na esquina de uma qualquer boulevard ou de um qualquer bistrôt, onde as mágoas e os azares sempre foram argumentos para tocar o coração daqueles a quem, por enquanto, a crise lhes tinha passado ao lado. Mesmo confortados por esta solidariedade de café, o desespero, a injustiça colada à pele, a desorientação por não encontrar o culpado, iam fazendo vitimas entre os mais desprevenidos, no Metro, nas gares de comboio, nas esquinas mais solitárias, nos trajectos, daqueles estavam em actividade, entre a casa e o trabalho, nas rotas de algum turista mais explorador do espaço que apareceu, sem ser convidado, nos lugares que a pobreza e a marginalidade territorializaram. 
Ás vezes reflectia-se uma espécie de medo, nos rostos das gentes, ao fim da tarde quando o fluxo nas artérias tinha menos vida e a cidade se aninhava para receber a noite fria.

Eu tinha uma agenda plena e grandes expectativas neste reencontro. Culturalmente deleitei-me com tudo o que a minha pequena estadia me permitiu - Quai D'Orsai, Louvre, Maison de Picasso, Museu Dali, L'Horlogerie, Cemitério do Père L'achaise, onde está sepultado Jim Morrison dos Doors entre outros vultos da cultura e da política; Casa Museu de Rodin, Conciergerie, Les Invalides, Casa Emmanuel Dèschamps; Centre Pompidou, e muitas permanências no Quartier Latin, de gratas memórias, em Montmartre, no Sacré Coeur,  e ainda alguns passeios pelo Quai Voltaire entre Chatelet e Notre Dame.

Inicialmente estranhá-mo-nos, eu e a cidade, depois de tanto tempo sem nos vermos. Tive a estranha sensação de que ela me queria "atrapalhar", confundir, fazendo-me sentir um estranho que tem, obrigatoriamente ,que cumprir um ritual iniciático de aceitação.Tactear-lhe o corpo, aventurando-se nas suas artérias, para ser aceite como um dos seus. Duas horas bastaram para, depois de entrar nela, nos reconciliar-mos. E apesar das mudanças na minha ausência que me frustraram os "imprevisíveis" rendez-vous com que Paris me brindou sempre que a visitei, constatei que a "patine" de encanto que envolve esta cidade tem a natureza perene das belezas que nem o tempo se atreve a beliscar.

Contei-te o meu "olhar e o meu sentir" deste encontro com Paris. Alonguei-me, quiçá de mais. Mas todos os meus amigos sabem que não faço segredo do meu amor incondicional por esta urbe e pelos seus encantos.

Beijo.

2 comentários:

  1. Adorei... Senti-me tão feliz, com este pequeno gesto teu! Parabéns pelo teu blog, e espero que ele continue a florescer!!!!

    ResponderEliminar
  2. Paris, de 68 a 74 com alguns interregnos, onde as feromonas, as minhas, as nossas, foram mais activas; o figado gemeu pelos choques etílicos em noites geladas por dentro da pele e, onde as ideias da liberdade e da justiça sonhada de 68, insinuavam a possibilidade de existir, se deitaram e se levantaram tantos vezes comigo (...) enfim, Paris da minha saudade

    ResponderEliminar