terça-feira, 3 de novembro de 2009

Desabafo para a Maria Lua

Olá Maria. Li com atenção este teu desabafo.

Acredito que a "impulsividade" que está por detrás deste escrito esteja, estou certo, prenhe de boas intenções e sobretudo de um querer para a mudança. Creio que se inquirirmos toda a gente sobre a necessidade e a vontade de mudar, quase todos reconhecerão que é preciso urgentemente fazê-lo em diferentes estruturas da nossa vida social e política. Mesmos aqueles que aparentemente tem as necessidades resolvidas muito para além das necessidades essencias, te dirão que é preciso mudar.

Chegados, em abstracto a este "natural" consenso, é preciso ser consequente. Exigamos pois que as ideias para a mudança ou mudanças se revelem. É então que (no concreto) os conceitos, os mais variados, sobre justiça distributiva, liberdade dos géneros, ética e moral, mostram a sua diferença e reflectem mentalidades e os interesses de grupo social ou de classe se revelam imperativos e, que por isso, os antangonismos se exprimem até ao conflito.

Os presupostos que estiveram na origem primeiro dos estados sociais e depois das classes, já muito depurados pelas diferentes filosofias políticas, continuam a fazer sentir-se mais ou menos residualmente nas mentalidades e com influência, na prática, em todo o Mundo nas diferentes ordens sociais e políticas. Mesmo nas (nossas) tão louvadas Democracias. A questão da quota obrigatória na atribuição de lugares às mulheres no parlamento, ainda que eu não concorde, mas isso seria uma outra discussão, reflecte, a Ocidente, a resistência mental, mesmo depois do inquestionavél e formalmente instituído principio da igualdade de direitos e deveres para todos independentemente do género.

È verdade e temos a consciência da nossa tremenda evolução cientifica e tecnológica. Os bens materiais e o exponencial e exagerado consumo atestam a filosofia de progresso capitalista do mesmo modo como atestam todos os seus atropelos e resistências à implentação de uma maior justiça distribuitiva da riqueza e á consequente evolução para um mais participativo, politica e socialmente, estado de direito, na perseguição da utopia da faternidade plena entre os homens.

Mas aceitar estas permissas como desígnio maior da natureza humana que mobilizasse as vontades, as irmanasse, na concretização do supremo objectivo da justiça social e da igualdade de oportunidades, "infectando" o nosso comportamento com a fé nesses ideiais, poria em causa uma ordem, e os seus defensores, que reproduzem, na prática, todo o seu contrário. Sustentando-se hipocritamente num discurso político que nos quer fazer crer que também a, utopia da justiça da igualdade e da fraternidade, estão nos seus horizontes.

Apesar do "nivelamento" que a fé tentou introduzir com a ideia de um Deus justiceiro perante o qual todos os homens são iguais na Terra, vivemos sentimentos contradictórios resultantes das nossas necessidades efectivas que põem em causa esse desígnio da religião que é a entrada no paraíso para os "homens de boa vontade". Duvidamos, cada vez mais, não só porque a dimensão de conforto pela espiritualidade é de dificil alcance, mas também porque a materialização necessária à nossa sobrevivência e bem estar que por cultura, abrilhantamos com o status social de sinais exteriores de conforto e da riqueza, é o propósito da nossa individualidade.

A lógica pela qual sobrevive o sistema, este sistema, é a do consumo.

A sua inesgotavél imaginação e criatividade atestam a convicção das sociedades ocidentais desde do séc. XIII que o capitalismo é o que de mais próximo, do paraíso celestial, o homem é capaz de construir na Terra. A História pode testemunhar quantas lutas e quanto sangue os homens derramaram quando a indignação de estar vivo e humilhado transforma ideais, em aspirações possiveis, e a morte, pela justiça e por dignidade, transforma-se numa passagem para a eternidade que a memória dos vivos garante de geração em geração.

O socialismo cientifico de Marx não preveu um fim tão rápido das classes sociais como também não preveu a Democracia representativa. Com a instucionalização do direito ao sufrágio universal as lutas á margem do poder instituido são apelidadas de terrorismo. E assim a reforma como instrumento de mudança das politicas, ganhou maior legitimidade e substituiu como instrumento da democracia política a REVOLUÇÂO e continua a permitir adiar e obviamente manter os previlégios de um grupo social de capitalistas e um sistema de repartição da riqueza que legitima a acumulação por parte de pequenos sectores da sociedade. Os mais ricos.

Assim o voto é cinicamente um direito que expressa "livremente" uma vontade mas que pela fraca informação e que pela desmobilização militante da sociedade civil traduz por um lado o medo de que os mitos de uma esquerda socializante, criados com a desinformação, nos cerceie a liberdade individual e nos impeça de realizar as nossas naturais indiossicrasias. Isto é; ser rico, belo e invejado pelos nossos semelhantes.

A história fez chegar este "recado" à ideia ou às ideias que parecem constituir o motivo das tuas inquietações e o que te faz interrogar acerca da consciência do SER. E que essa consciência um a vez "revelada" e porque seria da mesma natureza em todos nós logicamente expressar-se-ia objectivamente da mesma maneira.

A inércia vencer-se-ia pois, já não a partir dos grandes ideais, da igualdade, liberdade e fraternidade, que a Revolução Francesa revelou como designios políticos,que não foram alcançados, em prol do bem comum, mas a partir de uma politica que tem por base a ecologia cujo objecto é da Terra, como habitat que sustenta a humanidade e cujas mudanças afectam transversalmente as sociedades e implicam um esforço e cooperação de todos.

É esta a nova consciência que tu prevês ser mobilizadora da sociedade civil, e que por isso se organizará à margem das tradicionais instituições políticas pela absoluta necessidade da mudança de paradigma para o desenvolvimento sustentado da vida em geral e das políticas que o realizem.

Pois bem é de facto, também eu penso, o grande leit-motiv que provavelmente mobilizará vontades e imporá políticas contras as quais os interesses económicos de grupo cederão um pouco mais, porque decididamente é o modo de produção que defende a acumulação e o consumo desenfreado que mais prejuízo têm causado ao planeta. E nestas circunstâncias, a produção tradicional de riqueza como argumento que justifica os meios começa a ser criticavél e defendê-lo começa a ser também mal visto.

É possível prever numa primeira fase em que a nova filosofia de organização das sociedades tenha por base maior consenso social. Concedo que esta poderá ser uma plausível prespectiva. Mas apenas acredito que este consenso perdurará objectivamente na fase de transição das tecnologias de produção das energias limpas e renovaveis. Mas o meu cepticismo, não me faz acreditar que o modo de produção se altere. Ou seja que o capitalismo passe a ter uma vertente mais social, quer na intervenção e organização das empresas quer na distribuição da riqueza pelos productores, até se descaracterizar e passar a ser apelidado transitóriamente de outra qualquer coisa, para a qual a filosofia política ainda tem que inventar o nome. Talvez o meu cepticismo se sustente nos exemplos do passado histórico. Mas aprendi que é pelo passado que se projecta o futuro.

E eu acredito.

Talvez ainda vivamos o suficiente para assistir, tu, ao clamar pela voz da universal consciência em unissono na defesa de uma sociedade que se organize no respeito às suas origens naturais e aos meios que a sustenta e que apesar de ambientalmente mais limpa privatize todos os recursos essenciais nas mãos de alguns "empreendedores", por demissão do Estado, e com esta opcção acabe por justificar a minha falta de fé relativamente aos sistemas reformadores e eu continue a acreditar piamente que as mudanças, as mais estruturais, não se instituem por decreto mas por vontade do povo em revolta.

Bom fim de semana.

Um beijo

2 comentários:

  1. Maria da Lua morreu, de cansaço ... morreu por não se fazer ouvir, morreu pela incompreensão ao meu "modo" de olhar e entender a vida...! Mas posso te dizer, que pouco ou nada se identicaría com o teu artigo.
    Um abraço Francisco

    eu

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  2. Venho aqui muitas vezes e leio embevecida, tudo o que escreves com talento, arte e mestria, querido amigo que prezo.
    "Perco-me" a ler no meu silêncio e "acordo" com algum ruído irritante, inóspito e nefasto para me despertar deste meu "sonho" que que me embebo. Adoro ler o que escreves, consegues que viage contigo muitas das vezes pela limpidez que consegues transmitir.
    Tenho muitas saudades das nossas conversas e dos teus conselhos que foram bálsamo numa altura tortuosa da minha vida.
    Ausentei-me, conheci novos "mundos", mas ironia do destino as pessoas são as mesmas, muda apenas a página da net, que nova para mim escolhi, pensando ser mais interessante.

    Um beijo saudoso

    Lena Carapucinha

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