Despertou de um
sono longo. A realidade chegava-lhe ordenada pelos sentidos. Ainda de olhos
fechados o olfacto não transportou até si nenhum perfume que atestasse outra
humana presença. A epiderme reclama-lhe o toque com intensidade de carícia, o
beijo matinal no ombro direito, a junção do corpo dele com o seu, seguido de um
abraço que inexoravelmente a introduziam no Mundo. Eram assim inevitavelmente
os despertares aos sábados de manhã depois de ter conhecido o Bernardo, seu
namorado, havia pelo menos um ano. Dois "specimens" lindos, com
glamour, que desafiavam pelos bares e gafieiras do costume, os incontinentes
caçadores de sexo das soirés lisboetas. Aos olhares explícitos daquela tribo de
oníricos nunca tinham sido capazes de conter as sensuais coreografias que
exprimiam na batida repetitiva dos sons da House Music, ou no “caliente” abraço
que o bolero exigia, enquanto arrastavam os corpos colados pela pista ao
encontro da nota musical que coroasse o extâse que adivinhavam invadi-los, e
que se cumpriria com a cumplicidade mágica de uma atmosfera sombria que lhes
outorgava a natureza de silhuetas.
Recusava
acordar. Sabia que esta negação para a vida se manifestava sempre assim depois
de um “desencontro de afectos”. Mas desta vez sentia-se “incompleta” e por isso
não queria desvelar-se para um dia que lhe faria sentir o peso da solidão.
Estava “amputada” do afecto com mais empatia que tinha vivido estes últimos
tempos. E, obviamente, sentia que não eram só as noites de enlevo e orgasmos
que, em tão pouco tempo, já eram saudades, mas era tudo o que demais compunha a
vivência com este companheiro. Muitas vezes os “olhares” para a realidade
sobrepunham-se de tal maneira, e sabia não serem estes momentos de perfeita
sintonia, uma refinada gentileza dele, que concedia ao espírito, apesar da sua
sólida formação materialista, a veleidade de supor uma qualquer teoria acerca
das almas gémeas.
Nesse revelado
momento fazia sempre por esquecer a sua lógica de pensamento para não beliscar
a harmonia e a felicidade experimentada. Mais tarde, para “explicar” aqueles
momentos de existencial perfeição, sem trair a sua formação, enquadrava-os nos fenómenos
empáticos que os afectos potenciam. Também a estética não os dividia apesar da
diferente e natural, dizem, sensibilidade dos géneros. Discutiam livros e
cinema sem exaltar-se e em total liberdade de opinião.
Estava triste
porque este tempo de feliz mundividência estava prestes a desmoronar-se por um
ataque de imatura “ciúme” que uma tendência possessiva inflamou ainda mais.
Sentiu a liberdade, a sua, “encolher” quando ele “soltou” um discurso sobre o
compromisso que pretendia, percebeu ali mesmo, organizar as suas emoções. Para ela as relações eram, sempre tinham
sido, “edifícios” estratificados por experiências afectivas e emocionais, no
qual o ajustamento das mesmas determinava o cimento da sua estrutura e a sua
permanência. Percebia o incómodo, o dele, porque o piropo de um bem-apessoado
transeunte da gafieira tinha estimulado nela uma resposta no mesmo tom, seguida
de um curto “briefing” de insinuações, entrecortadas com ritualizadas
coreografias de côrte. O irreverente “beicinho” do Bernardo foi por si
apercebido sem nenhum sentimento mesquinho de superioridade. Sentiu um enorme
carinho pelo seu indiscreto momento de insegurança. Gostava da pessoa de
Bernardo. E gostava do homem que ele incorporava. Mas deu consigo numa das
mesas da gafieira a “engolir”, por respeito, aquele inoportuno e redutor
discurso acerca das formalidades que ele entende deverem fazer parte das suas
relações afectivas, e que acabavam de ser desvalorizadas pelo comportamento
dela.
Ficou triste pelo
que entendia ser um precedente ao qual não poderia ceder. Antevia que se
concedesse, a Bernardo, aquela perspectiva estaria a submeter-se a um código
moralizador do seu comportamento afectivo que não subscrevia e a mutilar a sua
“livre” natureza para viver emoções que, a seu ver, não punham em causa os
alicerces da sua relação com ele. Sabia,
sobretudo, que o valor e a permanência da sua relação com Bernardo resultavam
do somatório e da intensidade das experiências que viveram e que aquele, no seu
entender, insignificante episódio não poderia corromper esta concepção; para si
um credo, "de que as relações afectivas permanecem porque o seu edifício é
estruturado pela sedimentação de diferentes experiências com capacidade para se
ajustarem entre si”.
Queria
compreender se aquele discurso aparecia como recurso à justificação de um
despeitado momento ou se revelava parte de uma mentalidade por si desconhecida.
Entendeu voltar sozinha para casa e por antecipação começou a viver, ali mesmo,
a experiência de solidão que, no seu apartamento e na sua cama, se tornariam
mais intensos naquela noite de sexta-feira.
No dia seguinte,
na manhã de sábado, encontrava-se na cama pressionada pela decisão de ter de
ressuscitar ou aniquilar uma relação que ontem tinha suspendido. Agitada
enquanto “vivia” por remake o sucedido, sentiu-se desconfortável na cama. Uma
atrevida ponta de ar invadiu-lhe a atmosfera quente dos lençóis e causou-lhe um
“frissom” no corpo, agravando ainda mais o desconforto do seu melancólico e
triste despertar. Abriu por fim os olhos e a claridade que a manhã, já alta,
tinha lançado para dentro do seu quarto feriu-lhe o estado de sonolência. Algum
calor, impróprio do Inverno, fazia-lhe adivinhar a vida lá fora,
manifestando-se em desportistas de fim-de-semana mobilizados no combate à adiposidade
construída em empregos sedentários que lhe penalizam o corpo e a estética, numa
sociedade que paradoxalmente tem nas diferenças humanas um valor democrático,
mas que obtusamente insiste por influência de uma fanática filosofia da
“normatização” veiculada por alguns midia, em construir modelos para a
standarização de tudo e de todos nós.
Reconheceu neste
pensamento uma visão de crítica militante de todo o pensamento ou filosofia que
se aflorasse redutora das escolhas individuais de vida que não atentassem
contra a estabilidade da ordem democrática.
Mas era do mais
elementar bom senso reconhecer também o esforço meritório daqueles desportistas
de fim-de-semana, por influência, ou não, do discurso mediático. Sobretudo
porque era evidente que a actividade física é boa para a saúde.
Percebeu
entretanto que já nem mesmo o conforto da cama a compensava. Ficar ali
significava não contrariar a pulsão masoquista destes momentos e enredar-se no sucedido.
Energicamente levantou-se como se a vida a puxasse para dentro de si e
dirigiu-se ao chuveiro. Sentiu que a temperatura quente da água se revelava
como a primeira compensação daquele dia. Apostou em si e produziu-se sem saber
que um convite percorria à velocidade da luz os fios do telefone para se
anunciar num DRING. Atendeu. Do outro lado um colega e amigo revelava
enfaticamente a mensagem relembrando-lhe que hoje se celebrava o jantar da sua
agência de publicidade. Sociabilizar-se era tudo o que menos queria naquele
momento. Olhou-se ao espelho e gostou de si. E associou ao seu embelezamento
uma premonição qualquer que sentia positiva. Respondeu entusiasmada que sim.
Que estaria presente. Passou novamente pelo espelho para que a imagem, de si,
ali reflectida abrisse brechas na sua tristeza e lhe colasse no espírito
confiança e alegria. Muita alegria.
Evitou o
elevador para sair do prédio. Quando chegou à rua já a Lua com o seu exército
de estrelas tinham encetado uma perseguição ao Sol para instalarem a noite no
céu. Por impulso olhou para o firmamento na procura de uma estrela que sentisse
sua e que brilhasse, em si, toda esta noite. A empatia não se estabeleceu. Na
dúvida segurou bem dentro do peito a positividade do momento. Quando saiu do
carro, já no destino, constatou que o néon tinha ocupado toda a cidade.
Mostrou-se à
chegada e durante o convívio receptiva aos "piropos". Mas soube
também perceber os excessos. Tinha a certeza que nem tudo, naquelas exuberantes
demonstrações de afecto, era inteiramente verdade. Mas não deixou de estar à
altura das insinuações. Era natural nela a adesão aos jogos de palavras eivadas
de subliminares propósitos. Mas entendia-os como um modo que os seres
inteligentes encontraram para tornear, sem inconveniência, alguns formalismos
culturalmente ainda “vivos” e actuantes em muitas mentalidades. Como a do
Bernardo agora revelada. Por isso ele não entendia como é que estes jogos
podiam ser apenas prazeres intelectuais, carícias egocêntricas e por aí ficavam
sem, imediatas, consequências. Bernardo defendia que as insinuações disfarçam,
em menor ou maior grau, objectivas intenções. Mas concretizáveis, defendia eu,
apenas e só pela vontade consonante dos intervenientes. E, para ela, os afectos
onde estes prazeres insinuados se realizam eram, muito concretos e sempre experienciados.
Na despedida
alguns beijos não encontraram o local desejado e alongaram, para uma
sublimação, a sua permanência no "destino" possível que lhes reservou
no rosto.
Alguns olhares
insinuavam um desejo aceso nas entranhas que teriam que adiar. Porque nessa
noite, a excitada predisposição libidinosa não iria cumprir-se em sexo. Pelo
menos consigo como partenaire. Ninguém ali tinha acordado os seus duendes para
brincar aos "amantes”. O momento tinha tornado tudo demasiado óbvio para
todos. A indecisão parecia ter tomado conta das vontades e suspendido o tempo.
As insistências para que ficasse foram infrutíferas. Com um cordial e aberto
sorriso finalizou a despedida deixando alguns apontamentos em aberto para mais
tarde confirmar. Em seguida desprendeu-se suavemente da sua voz um cumprimento
de boa noite que se elevou-se no ar para apaziguar o cosmos e, todos e cada um
por si, pensaram num destino para aquela noite. O ronco dos automóveis
"estilhaçou" o silêncio e a claridade à solta dos faróis perfurou a noite
para desvendar o segredo dos caminhos. Ela empreendeu o rumo de casa como o
desejado destino.
No regresso o
tempo da viagem pareceu-lhe suspenso e sem atritos de qualquer ordem. A
silhueta do seu "refúgio", como que por magia, saída das trevas,
projectou-se num horizonte próximo. Bocejou dentro do carro. Minutos depois
dava o primeiro passo dentro do seu apartamento. Voltou-se, fechou a porta, e
“apalpou” o espaço com um olhar de reconhecimento. Sentiu um carinho imenso e
rememorou, num ápice, a história de todos os adereços que eram parte de si. Da
sua vida ainda curta de mulher adulta e emancipada. Detectou neles muita da sua
identidade. Afinal não estava sozinha. Projectou os braços apertando-os contra
o tronco num “abraço” possível a si mesma e sentiu que tinha construído um
instante de felicidade. Estendeu-se no canapé da sala fechou os olhos e
deixou-se ir com o turbilhão de pensamentos que reclamavam uma ordem, a sua, e
pressentiu que não mudaria. Embalou-se nesse jogo com as ideias enquanto o sono
cada vez mais presente lhe "roubava" a consciência. Não quis
resistir. Preferiu esperar que o Sol a chamasse no outro dia. Boa noite.
Murmurou para si. E não registou mais nada na memória.