domingo, 22 de agosto de 2010

Ás voltas na cama; monólogos de olhos fechados II

Era assim que "rezava" numa das colunas de opinião daquelas revistas que servem para aquietar o paciente nas salas de espera de qualquer consultório: “Amar não é apoderar-se do outro para nos completar, mas sim dar-se ao outro para o completar, retesei-me na cadeira como se inesperadamente me tivessem anunciado que não iria pagar aquela consulta porque uma "enorme generosidade" tinha, naquele dia, invadido por transcendente vontade aquele profissional da medicina. De imediato me dei conta de quanto era  ilógica e inplausível esta sensação associada aquela ideia sobre o que é amar. A razão ao nível a que nos habituámos a usá-la não comportava atitudes de tão grande desprendimento. Mas a ideia "romântica" era desafiadora da imaginação e atrevia-me, por contágio, a pensar como seria se inesperadamente estes impulsos de "desprendimento material" se impusessem ao espírito alguns dias por mês.

Imaginei a transformação desta Ordem Mundial. Os seus diferentes estádios.
Que hábitos abandonaríamos primeiro??? Quais os consumos que, no imediato, seriam mais desvalorizados??? Quais os princípios humanos que deixariam de ser apenas postulados de reflexão e estruturariam uma ética que privilegiaria comportamentos solidários ante qualquer natural proposta de competição que excluísse os menos apetrechados.

Sacudi-me. E a Razão contrariando a intensidade do devaneio "puxou-me" para dentro da realidade: uma sala, onde outros senhores doentes, como eu, sentados numa cadeira, esperavam ansiosos a vez, a sua, para confidenciarem ao clínico as suas mágoas ou as suas alegrias.

A auxiliar do médico fez soar na sala a sua voz, anunciando a vez de uma Srª Odete  e, com isso "trouxe" o meu olhar para o exterior. Constatei que  tal  como quando havia chegado à sala de espera, toda a gente, continuava  consigo mesma. Baixei os olhos e confrontei-me com a mesma coluna onde a frase que me levou ao "devaneio" sobressaía anunciando o principio do fim do desencontro amoroso que vem com a dialéctica dos afectos, e que durante uma relação amorosa tantas vezes se questionam.

Mas era inegável que a frase soava bem. E vendia!!! Representava uma perspectiva altruísta da relação amorosa. Mas não passa de um cliché. É um pressuposto muito generalista e "doutrinário" e que serve qualquer relação seja qual for a sua Natureza. Ninguém se sentirá mal se em qualquer relação cumprir este princípio.
Mas, no meu entender, não é por certo essa orientação da relação que mantém o interesse e a atracção dos enamorados. Não há fórmulas para o amor, lato senso. Defendo eu.
Nesta relação particular entre as pessoas que pressupõe alguma "perda voluntária" da vontade, é esse um dos sinais do enamoramento, não existe, pelo menos nesta empolgada fase, uma presença igualitária para a Razão e a Emoção, (o sentimento).

Nesta perspectiva, acredito que a permanência dos amores está muito mais ligada às emoções, latentes e vividas, e às expectativas criadas durante o  enamoramento, do que a qualquer projecção de um futuro, mais ou menos possível de realizar. Depois (...) é um processo de ajustamento e aceitação mútua à presença do outro, tantas vezes, reflectido e questionado nos desencontros.

Um balanço constante, baseado nos (ses) que nos infundem dúvidas e que nestes contextos de vida nos perseguem sempre. E ainda bem.
É um sinal de que a inquietação tem ainda alguma vitalidade no nosso espírito e é por ela que a "vontade" do prazer renovado nunca deixa de nos "assediar...

Desta vez foi outro o sentido que me chamou para o "real". A tal voz tinha feito soar o meu nome dentro da sala de espera.

f.

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